Cartas de Buenos: Quebra-cabeça de ossos

Segue abaixo, a íntegra da coluna Cartas de Buenos Aires, publicada hoje no Blog do Noblat.

Osvaldo Sabino Rosales tinha 27 anos em 1977, ano em que fuzilado na porta de casa. Era montonero e vivia em Mendoza, Argentina. Seu corpo foi levado pelos militares e enterrado no setor 33 do cemitério local, na parte dos indigentes, com o selo NN (do inglês “no name”).

Mês passado, passados mais de 30 anos, seus restos foram entregues à família pela Equipe Argentina de Antropologia Forense, conhecida pelas siglas EAAF (http://www.eaaf.org), especializada em reconstruir a identidade das pessoas por meio de ossos humanos, em uma cerimônia emocionante.

A equipe foi criada em 1984, um ano após a retomada da democracia depois de sete anos de uma ditadura militar que deixou um rastro de 30 mil desaparecidos. É uma organização não governamental formada por 55 pessoas que se dedicam a buscar a historia de cada corpo, coordenados por Luis Fondebrider.

Até o momento, realizaram mais de mil exumações, determinaram 446 identidades e restituíram aos pais os corpos de 257 pessoas que, assim, deixaram de ser desaparecidas.

Os ossos são, nessa historia, o único que sobreviveu à tortura e ao tempo, o único elemento tangível que os familiares podem recuperar para realizar o luto.

Uma vez que recuperam os restos, os antropólogos armam o esqueleto e, se é necessário, reconstroem as partes que sofreram algum traumatismo.

Depois de definir o perfil biológico (idade da pessoa ao morrer, sexo e estatura), cortam um fragmento de osso ou dente para extrair DNA, que depois é comparado com amostras de sangue de possíveis familiares.

Foi assim que identificaram, por exemplo, os corpos de Azucena Villaflor e da monja francesa Léonie Duquet, que haviam desaparecido na costa atlântica em 1978, depois de terem sido jogados na água nos chamados vôos da morte.

A experiência argentina, precursora, ganhou o mundo e hoje a equipe atua em mais de 40 países, em cinco linhas: investigação, treinamento, desenvolvimento cientifico, fortalecimento do setor e documentação.

No início dos anos 1990 viajaram ao Kurdistão para buscar a população kurda que foi vitima dos ataques do governo do Iraque.

Depois, realizaram um dos trabalhos mais transcendentais, quando foram convocados peloTribunal Penal Internacional para investigar os massacres ocorridos na Bósnia, Croácia e Kosovo. Um dos casos de maior repercussão foi a busca, exumação e identificação do corpo de Che Guevara na Bolívia, em julho de 1997.

Atualmente trabalham em missões na busca de desaparecidos durante a ditadura militar de Stroessner, no Paraguai, e realizam treinamentos para antropólogos em Chipre e no Timor Leste.

Enquanto o Brasil não decide se abre arquivos ou não, aqui eles abrem covas sem medo.

4 Comments

  • Salito disse:

    Bravo! Senhora, bravo!
    Suas cartas bonairenses são um espanto de amor e ternura, na raça!
    Salito

  • Eduardo Baró disse:

    Son cartas de quien sabe dar testimonio de la verdad.
    Las escribe y las firma con nombre y apellido. Aquí, pese a todo, no le tenemos miedo a la verdad, ni a la justicia.
    Eduardo Baró

  • Luciani disse:

    Parabéns a essa equipe maravilhosa do EAAF, pelo excelente trabalho que realizam.
    Só sinto que, aqui no Brasil as coisas demorem tanto pra acontecer…

  • Hilda disse:

    “Enquanto o Brasil não decide se abre arquivos ou não, aqui eles abrem covas sem medo.” Bravo!
    Depois as pessoas não entendem meu descontentamento com a lentidão brasileira…
    Palmas para todos da equipe EAAF.
    Palmas para a Argentina!

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