Dica de Leitura: A Vendedora de Fósforos

Foto: Divulgação editora Rocco

Reproduzo abaixo a crítica do livro A Vendedora de Fósforos, de Adriana Lunardi, feita pelo escritor Paulo Scott e publicada esta semana no Jornal Zero Hora, do Rio Grande do Sul.

A obra é muito boa, mas como conheço a autora e não entendo nada de crítica literária, sou absolutamente suspeita e ao mesmo tempo ignorante para escrever sobre o livro.

Agradeço a Ricardo Heinen por ter me presenteado com dois exemplares. Um seguirá adiante no Natal. É da Mana, por supuesto.

A minha irmã

Adriana Lunardi lança o romance “A Vendedora de Fósforos”

Como procuro anotar em toda resenha que faço, advirto: não sou candidato a crítico literário e jamais aceito o convite para escrever sobre livro do qual não tenha gostado. O frágil contexto literário brasileiro contemporâneo não merece que se some a seu castigo o peso minúsculo das minhas rejeições. Essa premissa dramática se concerta com o fato de eu ser leitor que acompanha com atenção a obra dessa autora que nascida em Santa Catarina veio crescer em nosso Estado, Adriana Lunardi, que agora lança o romance A Vendedora de Fósforos.

Como aconteceu com Michel Laub e seu trabalho recente (sim, dedico idêntica atenção de leitor a Michel e a outros autores), Adriana Lunardi, que já produziu obras importantes como Vésperas (2002), livro no qual recria, ficcionalmente, os últimos dias e momentos das vidas de escritoras de grande personalidade – como Virginia Woolf e Ana Cristina César, Dorothy Parker e Clarice Lispector –, conquista excelência na sua carreira de escritora com A Vendedora de Fósforos. A história, centrada na relação entre duas irmãs, começa com a protagonista recebendo, por telefone, a notícia de que sua irmã fora hospitalizada em razão de uma crise nervosa. A simplicidade alinhada à ousadia em nominar gestos, estados, condições, traça um roteiro calçado pela linguagem que não é exatamente uma linguagem poética, reduzi-la a esse rótulo seria diminuir o esforço bem-sucedido que a autora comete ao encaixar as palavras de maneira a seduzir o leitor logo na primeira página com manobras que resultam muito além da sonoridade, da plasticidade. As palavras e seu uso, novo ou não, estão ali justificadas em função da história.

A densidade dessa história, uma densidade não revelada de imediato, se agrega pela concomitância de duas linhas narrativas que ao final se encaixam e se justificam. A estranheza realçada no livro, que poderia sugerir um atrativo fácil, desses recorrentes e necessários ao mundo literário que disputa espaço como nunca com a abundância de entretenimentos em plataformas eletrônicas, está na falsa confusão entre a narrativa e a vida da autora. Mesmo não conhecendo Adriana (sou apenas seu leitor), sei que moramos na mesma cidade e imagino que a ambiência inserida em A Vendedora de Fósforos seja flagrantemente similar à sua vida no Rio de Janeiro.

A sugestão nessa similitude biográfica, presente nas obras de outros autores brasileiros contemporâneos, como é o caso, por exemplo, de Miguel Sanches Neto, funda uma estratégia que em nada interfere com o sucesso da narrativa; serve, entretanto, para acelerar a cumplicidade que introduzirá os percalços de uma família de cinco pessoas (o casal, um filho, duas filhas) e sua sobrevivência cheia de lacunas. Serve para circunscrever o relacionamento entre aquelas duas irmãs que, de certa forma, progridem num universo darwiniano muito peculiar. Há zelo e perversidade que não se descobrem tão somente no trânsito pelo convívio e falências sociais: há modos diferentes de amar e criar versões para o amor, há modos diferentes de atender.

Sobrevivência e liquidez de identidade, entre identidades, atraso e vitória, inevitáveis, perdidos entre as dúvidas de um olhar final. Uma boa história não liga para o que já foi contado, tudo já foi contado, abre, sim, janela afastando e, paradoxalmente, consolidando heranças com as quais é preciso dialogar por ser justamente esse um modo de subverter a finitude e os desastres que os outros (e nossa vida nem sempre pacífica com os outros) produzem dentro de nós. Adriana fala de cidades, fala das idiossincrasias da sua geração. Tomando de novo em conta também o livro recente de Laub, Diário da Queda, daria para anunciar que se vive um interregno de acertos de contas, mas isso serviria apenas para diminuir o poder de transfiguração que, apesar dos clichês e estereótipos, sempre haverá na literatura, na boa literatura.

Desde sempre sou um leitor compulsivo e ansioso, interrompo a leitura, corro páginas e olhos até o final, valendo-me do final, para assim jogar, de modo infantil até, com a fortuna que desejo encontrar na leitura. Algumas vezes, mesmo com as narrativas mais instigantes, essa mania me aprisiona num contexto de ligar um ponto ao outro. Não foi o que ocorreu com o belíssimo livro de Adriana. Final que, sob qualquer ângulo, causará perplexidade e levará o leitor a pensar por dias sobre o que a vida é capaz de esconder. Isso. Aqui, um livro que merece atenção.

*Paulo Scott.  Escritor, autor de “Voláteis”

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