Cartas de Baires: a justiça que repara e cria novos marcos jurídicos

Segue abaixo a íntegra da coluna Cartas de Buenos Aires, publicada hoje no Blog do Noblat.

Foto Reuters

A chamada “mega causa da Esma”, que culminou na semana passada com a condenação de 18 militares argentinos por crimes contra a humanidade (12 à prisão perpétua), deixa diversas marcas simbólicas e jurídicas.

O julgamento é histórico por vários motivos. Primeiro, pelo seu tamanho. Reuniu o maior número de militares desde que as leis que anistiavam os oficiais da última ditadura argentina foram revogadas, em 2003.

Os acusados foram condenados por crimes praticados contra 86 pessoas na Escola de Mecânica da Armada, mais conhecida como ESMA. Desse total, 28 continuam desaparecidas e cinco foram assassinadas.

Entre as vitimas, Azucena Villaflor, uma das fundadoras da organização Mães da Praça de Maio, duas freiras francesas que apoiavam o grupo, Alice Domon e Leonie Duquet, e o jornalista Rodolfo Walsh.

Na lista de condenados, além de Alfredo Astiz, que ficou conhecido como “anjo loiro” ou “anjo da morte”, de Jorge “El Tigre” Acosta e de Ricardo Miguel Cavallo, há outros 15 repressores que receberam sentença pela primeira vez.

A causa também é histórica porque envolve um dos poucos centros clandestinos com sobreviventes, em torno de 200 dos cinco mil que passaram por lá. Isso significou relatos orais impressionantes.

E mais: relatos novos em relação aos primeiros depoimentos pós-ditadura, e depoimentos inéditos, como de vizinhos.

As vítimas dizem que antes a prioridade era provar a existência dos centros clandestinos e dos desaparecidos, e reconstituir os nomes dos repressores. Agora, liberados desta necessidade, podem falar de outros temas como, por exemplo, a violência sexual contra as mulheres.

Aliás, este é o primeiro julgamento que inclui a violência sexual como crime contra a humanidade – um avanço enorme no marco jurídico nesta área. Antes, o tema era tratado como uma tortura a mais.

O volume de testemunhos permitiu aos advogados marcar os eixos da violência de gênero na ESMA: escravidão sexual, abuso sexual apelando para a fragilidade mental e física das vitimas e violações sistemáticas de mulheres grávidas.

Uma particularidade terrível incluía acordar as seqüestradas durante a noite e fazê-las se arrumarem para ir a restaurantes ou dançar. Uma das vítimas contou que, como uma triste e ilusória forma de resistência, elas escolhiam os pratos mais caros e escreviam com batom nas portas dos banheiros.

Outro diferencial deste julgamento foi que desta vez as testemunhas falaram de frente para os acusados e o público. Elas afirmaram que, embora isso aumente a pressão na hora dos depoimentos, é muito mais reparador. Uma boa notícia.

Esperamos outras mais, amanhã e sempre. Aqui e aí.

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