Cartas de Baires: Gente pequena

Para ver mais fotos: : http://little-people.blogspot.com/

Não sei o que me chocou mais, se a primeira notícia ou a segunda.

A primeira é a seguinte: os corpos de duas senhoras gêmeas, de 73 anos, Susana Elena e Beatriz Aida Laguardia, foram encontrados mumificados na semana passada em um apartamento da Recoleta, um dos bairros mais sofisticados de Buenos Aires.

A principal suspeita da perícia é que ambas tenham morrido no dia 5 agosto do ano passado, após intoxicação por monóxido de carbono. Estavam com roupas de inverno e tinham contas deste dia sobre a mesa. Todos os demais impostos se acumulavam embaixo da porta. Não havia sinais de violência.

As irmãs só foram descobertas agora, quando o porteiro do edifico chamou as autoridades em função de um forte odor que saía do quarto andar, acrescentando que as duas vizinhas não eram vistas há muito tempo. O apartamento, avaliado em US$ 500 mil, ocupava todo o piso.

De acordo com o jornal La Nación, os vizinhos reclamavam há dias do cheiro, e todos achavam que elas estavam mortas, mas ninguém se dignou a fazer a denúncia. Ninguém queria se “envolver”.

Parece que contribuiu para isso o fato de as irmãs serem pouco sociáveis. Iam apenas à igreja e ao supermercado. Ninguém sabe descrevê-las fisicamente, nem o jornaleiro da esquina.

A exposição ao monóxido de carbono, gás inflamável e inodoro, por mais de uma hora leva à morte rápida. Intoxicações desta natureza não são raras de acontecer em países que usam muita calefação.

Mas a segunda notícia para mim é mais cruel: os vizinhos não chamaram a polícia, mas entraram com uma ação civil, em novembro, três meses depois da morte das duas, pelo atraso no pagamento do condomínio.

Não se dignaram a bater na porta para ver o que passava com o vizinho do lado, que morava ali há mais de 20 anos, mas não perderam tempo para cobrar o dinheiro que elas deviam. “O que passa em cada apartamento é questão de cada um. Sou responsável apenas pelos espaços comuns”, defendeu-se o síndico.

Essa situação me remeteu ao blog Little People. Nele, o artista plástico inglês Slinkachu publica fotos de pessoas em miniaturas espalhadas por metrópoles como Londres, Manchester, Barcelona e Amsterdam.

Ao reproduzir situações cotidianas em uma perspectiva reduzida, aborda temas como o medo e a solidão nas grandes cidades. Um trabalho que nos dá conta da nossa pequenez. Que, em alguns casos, é também de alma.

Vale a pena espiar: http://little-people.blogspot.com/

Texto integral no Noblat, AQUI. 

7 Comments

  • Jair Cordeiro disse:

    triste demais essa situação. em uma das notícias publicadas pelo La Nación, o jornalista encerrou perfeitamente com essa citação: “Como remedio para la vida en sociedad recomendaría la gran ciudad. Hoy en día, es el único desierto a nuestro alcance.” – Albert Camus

    acho que resume tudo.

    (e qto ao little people, já conhecia e é um projeto sensacional!)

  • Grande texto gi, me emocionei.
    beijocas,

    Gaby

  • Ligia Ghizi disse:

    Estarrecedor! E pensar que não é a primeira vez, e que também aconteceu em outros lugares desse planeta; dito humano!!!

    Quanto à arte de Slinka, também é surpreendente! E admirável, que seja produzido pelo mesmo Homem, que habita esse mesmo planeta.

    Tomara existir mais pessoas com a visão do artista, que as que vivenciaram o triste episódio, pois pelo visto (!), não enxergam nada, que não seja o próprio umbigo!
    Parabéns por seu artigo, Gisele!

  • Maggie disse:

    Tivessem as irmãs o temperamento que tivessem, nada justifica tamanho descaso com o próximo. Ridículo o argumento do síndico: devemos supor que se alguém fizer ruído em excesso não tocará na campaínha para pedir que não incomode? Ou que se alguém fizer uma fogueira dentro da casa, não tomará providências? Ridículo, hipócrita e muito cómodo. Reflexo da impessoalidade e da desumanização dessas ‘Selvas de Pedra’ onde acreditamos ter morada!… Nos últimos anos, esses casos sucedem a um ritmo impressionante em Portugal e estão a dar brado na comunicação social. O centro de Lisboa está repleto de idosos a viverem em andares altos e sem elevador. A maioria é prisioneira dentro das próprias casas por incapacidade de subir e descer. Vale ler: http://www.publico.pt/Local/no-alto-dos-predios-da-baixa-ha-idosos-a-precisar-de-ajuda-1526365?all=1
    Basta “googlar” por casos idênticos para conferir o que sucede aqui em Portugal.

    p. s – Bravo pela subtileza implícita nas fotos e no link que fecham o artigo!

  • Luciana Rosa disse:

    Duvido muito que no Brasil as pessoas demorassem tanto para dar-se conta e para acionar a polícia. Relacional como é o brasileiro. Mas, a tristeza dessa história me faz lembrar de uma querida professora lá da nossa FACOS, a Eunice Olmedo. Ela faleceu sozinha em seu apartamento na pequena Santa Maria e levou todo um final de semana para ser descoberta. Minha pergunta é, o que estamos fazendo com nossos idosos? Who cares???

    P.S.” se defendeu o síndico”.(Gisele, o correto não seria “defendeu-se”, porque vem logo após uma vírgula.

  • Lorene Soares disse:

    Acho que o fato pode ocorrer em qualquer grande cidade, mais ainda em lugares de poder aquisitivo alto como o do bairro da Recoleta, onde parece “politicamente correto” que os vizinhos se comportem ignorando a presença dos demais. A indiferença parece uma atitude desejável e o isolamento é a resultante disso. Não sei como reverter esse processo, mas sinto uma ânsia em fazer algo por. A poesia e a sutileza com que vc Gisele, associou com as duas matérias, me dão alento.

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