Cartas de Baires: Durar não é o mesmo que viver

A Argentina – para um grande jornal brasileiro um país “parado no tempo” avança a passos largos em temas muito contemporâneos.

Aprovou semana passada a chamada lei de “morte digna”, que permite ao paciente terminal ou em estado irreversível rejeitar tratamentos médicos que possam prolongar seu sofrimento ou “vida artificial”, conectada aos aparelhos.

Quem já viu uma pessoa querida sendo submetida a uma verdadeira tortura apenas para “durar” mais entende perfeitamente do que se está falando.

Aconteceu comigo em 2005, com a minha avó. Tive o privilégio – porque despedir-se de um ser querido o é – de estar com ela na véspera de sua morte, durante toda a noite, de mãos dadas.

Há dias ela não comia, por decisão própria, e isso foi causando uma série de falências em outros órgãos. Nessa reta final, ela não conseguia nem tomar água. Eu ficava molhando seus lábios com um paninho úmido para não ressecarem.

Sabíamos que ela tinha optado por não viver mais. Não estava doente, estava apenas cansada. Queria ir. Meu pai, que é médico, decidiu não interná-la. Seria cuidada em casa por ele e enfermeiras, rodeada do nosso amor.

Após esta noite de vigília, justo quando estava amanhecendo, ela abriu os olhos, olhou para o soro e me pediu: me desliga? Ela queria que eu tirasse a única coisa que a mantinha viva. Na hora me pareceu o mais certo a fazer, mas a gente não podia. Para nosso alívio, morreu naquela mesma manha.

A medida aprovada na Argentina permite isso e era pedida espacialmente por familiares de pessoas que se encontram em estado vegetativo. Játinha sido aprovado pela Câmara dos Deputados, e agora recebeu votação unânime do Senado.

A lei dá a palavra final ao paciente, que deve deixar por escrito uma autorização de suspensão destes cuidados (inclusive o soro). Um familiar próximo também está habilitado a autorizar a interrupção do tratamento, nos casos em que a pessoa hospitalizada não esteja consciente.

Mas a legislação também permite que o paciente ou o familiar possam voltar atrás, se mudarem de ideia e optarem pela continuidade do tratamento. A nova lei adverte, porém, que “fica expressamente proibida a prática de eutanásia” e inclui que nenhum profissional de saúde será punido por atender a vontade do paciente ou da orientação dada por um familiar da pessoa internada.

Este é apenas um dos temas considerados “delicados” que a Argentina resolveu encarar. Mas há outros. Além de ser um dos países pioneiros no matrimonio igualitário e na condenação de repressores da ditadura militar, aprovou esta semana uma lei que permite escolher livremente, sem intervenção médica ou judicial, a identidade sexual.

 O conceito de “desenvolvimento”, por sorte, não tem apenas o viés econômico. 

Leia coluna no NOBLAT, AQUI

9 Comments

  • Tanira disse:

    Um sensível relato sobre um tema sensível e, por isso mesmo, que necessita ser discutido com sobriedade. Obrigada por compartilhar tuas experiências, Gisele.

  • thaiyogamassagem disse:

    Uma lembrança linda, necessária, emocionante, chamada dignidade. Viva a Argentina!

  • Aline Copetti disse:

    Texto incrível e sensibilidade para colocar uma situação que devia ser mundialmente decidida! Gostei muito, Gisele, e concordo que há outras áreas de desenvolvimento tão ou mais importantes que a econômica, para a qual dão tanta atenção! Obrigada por compartilhar conosco tua experiência!
    Beijo!

  • tuliobraganca disse:

    Acho um grande mistério essa atraso e populismo da Argentina em temas econômicos e políticos e essa vanguarda total nessas leis de homossexuais, maconha e pacientes terminais.

    • Gisele Teixeira disse:

      A Argentina é bipolar!

    • Eduardo Baró disse:

      No es tan misterioso…. Gobernar para las mayorías y también para las minorías. A lo primero le dicen populismo, a lo segundo demagogia, pero son dos caras de una misma moneda. Viene de no tener miedo de irritar al establishment, sea económico, religioso, político o moral.
      La misma lógica, el mismo Parlamento que “saca los pies del plato” y recupera YPF, es la que devuelve derechos, encarcela torturadores, recupera la dignidad de la muerte, la identidad del excluído y recibe al inmigrante.
      163 generales retirados llaman a no presentarse ante la Comissão da Verdade. ¿Queda alguna duda de que aquí estarían presos?

  • martha disse:

    POR SUERTE EN EL CONGRESO SE PUSIERON DE ACUERDO PARA APROBAR ESAS LEYES.CONOZCO CASOS DE PERSONAS QUE ROGABAN QUE HUBIERA UNA LEY DE MUERTE DIGNA Y NADIE LOS QUISO ESCUCHAR.

  • Leticia Centeno disse:

    De todas as tuas Cartas de Baires, esta eh minha preferida ate aqui. Assunto super delicado, mas mais delicada e sensivel ainda foi a forma que tu escolhestes escrever sobre ele.

    Obrigada por dividir aqui tuas impressoes e experiencias.

    Um Beijo!

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