Linhagem, por Gislaine Teixeira

Aproveito o finzinho do Dia dos Pais para compartilhar este texto lindo, escrito pela minha irmã, Gislaine Teixeira, para o pai, nesta data tão especial.

dia dos pais

Cuido de uma memória como a um tesouro, doce e engraçada, de pureza infantil. Lembro dos olhos grandes por detrás do vidro espesso, os maiores olhos que já vi. E quando tirava os óculos para limpá-los, seus olhos ficavam pequeninos, talves os menores olhos que já vi. Isso me impressionava curiosamente. E acompanhava a limpeza das lentes que devolvidas ao seu devido lugar fariam os olhos crescerem de novo. Um mistério.

Mas tenho muitas outras lembranças do meu avô que me acalentam e confortam nesses dias de inverno. Os dedos curtos e grossos, juntas espessas em nós proeminentes, que em nada comprometiam suas habilidades como artesão. Num trançar de arames criava peças utilitárias para facilitar sua lida, passar o tempo, ou dar vida a algo que ainda não existia. No meu armário-cofre da cozinha ainda guardo um porta-cuia desse arame tramado, que tem os pés protegidos pela borracha de conta-gotas. Ele era muito cuidadoso.

Foi homem do campo e não sei bem como se deu sua vinda para a cidade. O que sei é que trouxe consigo tudo o que pôde. O galinheiro, os bancos de toras de madeira, o butiazeiro, o pé de laranja do céu, a horta, as facas. Seu pátio era um universo em contínua transformação. As vezes apareciam as codornas, noutras os pintinhos e esse velho habilidoso criava várias engenhocas com lâmpadas, para mantê-los aquecidos. Esse mundo me maravilhava e a cada visita eu fazia um passeio pelos fundos do quintal para ver as novidades que ele pacientemente explicava. Eu adorava passar pela porta dos fundos que tinha tela e dobradiças com molas.

Era um homem de muito conhecimento. Sabia tudo do mundo rural e tive a oportunidade de acompanhá-lo muitas vezes nas idas de kombi até nossa chácara. As memórias da kombi têm um capítulo especial, as viagens se davam num universo paralelo. A direção horizontal, o estepe dentro da carroceria, o cheiro de óleo e carne, os sacos de laranja, os arreios e pelegos, e eu feliz vivendo mais uma aventura.

Sempre carregava um molho de chaves enorme que tilitavam avisando sua aproximação. Era um grande apreciador de tango e exímio pé de valsa. Mas sua paixão maior parecia ser seu roseiral, que incluía minha avó, que de sobrenome Rosa se destacava como a peça mais adorada da coleção. Nunca me deixou sair de sua casa sem uma rosa que ele mesmo cuidadosamente colhia na hora. Lembro dele acenando para pararmos o carro porque ele havia esquecido da flor. Será que ele sabia que isso era importante para mim? Eu amava esse avô que me fazia sentir tão especial!

Percebo que minhas melhores memórias com ele são ainda na minha infância, porque deixei minha terra natal muito cedo, aos catorze anos e apesar de manter visitas periódicas, perdi o convívio íntimo.

Já adulta e desbravando cantos escondidos no mapa retorno à casa rosa para encontrar meu avô já enfermo. Meu olhar percorre cada detalhe confirmando minhas memórias e fortalecendo a nitidez dos afetos. Reconheço uma foto minha na Grécia num dos porta-retratos da saleta da entrada, e se renova em mim o laço que apesar do tempo nunca se fez rompido.

E o carretel da vida se desenrola um pouco mais, puxado por um legítimo ariano que abriu picada em novo território. Muito batalhador e principalmente perseverante, enfrentou a academia, o afastamento da família e os poucos recursos. Mas para mim, meu pai nasceu médico e todo de branco.

Assim como meu avô, meu pai também tem os dedos curtos e grossos e o talento de artesão, que usou habilidosamente para costurar tecidos humanos. E através dessa arte reconstruiu corpos e famílias, histórias e futuros.

O hospital era sua segunda casa e de alguma forma, minha também. Fazia visitas, conversava com as funcionárias e logo cedo assisti cirurgias para conhecer como a gente é por dentro.

Minha infância foi marcada por fragilidades e acolhimento, liberdade e experimentação. O médico-pai dava permissão às maiores ousadias, e quando a vizinha telefonava avisando que eu estava em cima do muro alto ele respondia: – Se cair e quebrar, a gente ingessa! Quando brincava de correr e voltava numa crise asmática, nebulizava. Ele sempre tinha um diagnóstico: joelite, cabecite, dedite. E até hoje me parece que ele tem remédio para tudo.

Segurando meus tornozelos me virava de ponta cabeça, me perseguia pela casa se fingindo “formigão”, e todo domingo de manhã tinha passeio pelo mundo fantástico das letras: uma visita a banca de revistas da dona Maria na galeria da rodoviária.

Posso dizer que meu pai é um homem de temperamento. Calmo para me contar histórias antes de dormir, explosivo quando contrariado e emotivo nos assuntos pertinentes à família, amizade e compromisso. Foi o homem que mais vi chorar, e quase todas as vezes de extrema alegria. Herdei essa labilidade.

Herdei também sua retidão, que hoje não me permite estacionar em lugar proibido ou atrasar pagamento, em hipótese alguma. “A Recreativa” nunca me falta a cabeceira, o baralho e o vinho são fontes de lazer nas noites em grupo e o ovo cozido é sempre um sucesso.

Temos uma paixão comum também pelas estradas e mapas e apesar de no momento minhas raízes estarem mais proeminentes que as minhas asas, aproveito suas andanças para viajar junto e sonhar solto.

Também tenho os dedos curtos e grossos e grande habilidade manual, que uso amorosamente para desfazer os nós dos tecidos e acalmar os corações aflitos. Tenho a terra como igreja e a família como um bem precioso que me instiga a rever conceitos e a desapegar diariamente. Dois meninos vieram por mim para continuar essa tecitura.

E é dessa linha que a gente não vê, que a gente é o que é. Linha que costura a história de cada um, na pele, no mapa, na trilha e no coração. Minha vida é uma linda colcha de retalhos chamada gratidão.

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