Tango e crises econômicas

tango e crises economicas
Músicos de rua, na década de 1930. Fonte: Archivo General de la Nación

 

Não fosse a quebra da bolsa de Nova Iorque, não teríamos algumas das letras mais lindas da história do gênero. Paradoxo. Voltemos no tempo para saber um pouco mais desta história sobre tango e crises econômicas. 

cuando no tengas ni fe,
ni yerba de ayer
secándose al sol

 

Tango e crises econômicas – 1930

O auge que o tango viveu na década de 1920 – seus anos loucos – foi interrompido pela crise econômica de 1930, derivada da quebra da bolsa de Nova Iorque. Na Argentina, foi o fim do ciclo econômico e político começado em 1880. A queda nos preços do milho e trigo estende a crise ao campo, obrigando a milhares de trabalhadores rurais a migrar para as cidades. Surgem as primeiras villas (as favelas argentinas).

O tango, como produto social, não fez mais que refletir este clima. Surgiram os grandes letristas urbanos, que começara a explorar os conflitos dessa sociedade em mudança – nascia o tango de protesto, representante das classes trabalhadoras. Com isso, o gênero deu um salto de qualidade, passando de cantar queixas individuais a radiografar sem piedade uma sociedade arrasada e sem destino.

Pela primeira vez, o tango incorporava temas como o suicídio, o passar do tempo, a ausência de Deus. O tango ficava mais denso, metafísico, “un pensamiento triste que se baila para usar as palabras de Enrique Santos Discépolo (1901-1951), o melhor representante deste período.

Discépolo compôs obras fundamentais para o tango, como Cambalache, Yira Yira, Uno e Infamia (todas entre 1920 e 1930).

La gente es brutal
y odia siempre al que sueña

lo burla y con risas despeña
su intento mejor…

“Después de trabajos, fatigas y luchas, regresaba yo a Buenos Aires sin un centavo. Me encontré con mi hermano Armando – también en un mal momento– y me fui a vivir con él a una casita de la calle Laguna. Allí surgió “Yira, yira”, en medio de las dificultades diarias del trabajo amargo, de la injusticia del esfuerzo que no rinde, de la sensación de que se nublan todos los horizontes, de que estén cerrados todos los caminos […]” Texto de Horacio Ferrer. Tomado de Enrique Santos Discépolo. Cancionero.

tango e crises economicas

Foto do Archivo General de la Nación

Conhecido como Discepolín, tinha uma visão pessimista e irônica do mundo. Era um letrista de temas tão existenciales que se tornou  adjetivo em Buenos Aires. Quando alguma coisa é muito profunda se diz aqui que é “discepolina”.

Hoy resulta que es lo mismo
ser derecho que traidor,
ignorante, sabio, chorro,
generoso, estafador.
Todo es igual… Nada es mejor…
Lo mismo un burro
que un gran profesor

 

A obra mais conhecida de Discépolo no Brasil é o tango Cambalache, publicado em 1935, e regravado por Caetano Veloso, em 1969, por Angela Ro Ro em 1982, por Raul Seixas, em 1987, numa versão em português de sua autoria, e por Gilberto Gil, em 2004.

 

Enrique Cadícamo é outro destaque dos mais importantes e refinados poetas que, em 1933, escreveu o tango Al mundo le falta un tornillo. Nesse mesmo ano,  Mario Battistella  escreve Al pie de la Santa Cruz, que resume tudo. Fala em greves, em fome, em luta sangrenta.

É assim que o tango, criticando os abusos e as desigualdades, se convertia em um símbolo de protesto contra a violência e a corrupção da época. Como se não bastasse, em 24 de junho de 1935, em um trágico acidente na Colômbia, morrem Carlos Gardel e Alfredo Le Pera. Foi a Década Infame.

Tango e crises econômicas – 2001

A experiência coletiva mais traumática vivida por muitos dos que escrevem tangos hoje foi a crise de 2001, que chegou depois de uma década difícil, onde o desemprego e a marginalidade já eram sentidas. Foi essa a realidade que acabou refletida nas letras deste novo tango. Um dos temas mais fortes foi o da emigração.

“Se no imaginário do tango anterior, a volta ao lugar de origem se consuma, como em Volver, de Gardel, no tango recente o que emigra muitas vezes já não sabe se poderá retornar. Ao contrário, agora o eixo é a possibilidade certa de já não poder voltar”, diz o pesquisador Sebastián Linardi.

Também há letras escritas do ponto de vista de quem optou por ficar, por não haver para onde fugir. Para muitos, o “Mi Buenos Querido” se transformou em “Mi Buenos Aires Podrido” (podre, em português).

 

Tango e crises econômicas – 2018

Mais recentemente, parte desta nova geração retomou o espírito do tango social e político que abordaram poetas como o já mencionado Enrique Santos Discépolo, e outros como Julián Centeya, Celedonio Flores, Cátulo Castillo, Homero Manzi e Enrique Cadícamo. Talvez por estarmos outra vez envolvidos em crises políticas e econômicas, ou porque os grandes problemas existenciais continuam sendo os mesmos de antes.

Tiempo dócil nuevo fósil
aire ciego
lista muerta grito viejo
plata huesos
goles palos roña sueño
tibio cielo
clase media mugre lengua
playa vuelos
calle furia calle falsa calle fuego.

(Calle, tango com música de Alfredo Rubín Fabrizio Pieroni.  Letra: Alfredo Rubín. Interpretação de El Afronte).

Mas há novos “dramas”, como se pode ver em Tango Palestino, Monocultivo e Hacia las Cenizas, este último sobre o incêndio na boate Cromañon. A violência gratuita, a pobreza, a insegurança, a violência de gênero e as diferenças sociais começaram a fazer parte da temática de discos conceituais.

Essas novas letras podem chegar pelas mãos do roqueiro Índio Solari, que compôs para a orquestra Ciudad Baigón, mas também de um texto mapuche (povo originário da Patagônia) anônimo, como no caso do Cuarteto Coviello. Os volumes 1 e 2 do projeto Un disparo en la noche, da Orquestra Típica Julián Peralta (2012 e 2016), oferecem um bom panorama do tango contemporâneo.

 

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