Tango e holocausto

Tango argentino, uma das músicas do Holocausto, é o título de matéria publicada esta semana na Télam, agência nacional de notícias da Argentina. Segundo o texto, o gênero – que já circulava estendido em um determinado circuito europeu desde a década de 1920 –  fez parte tanto de atos de resistência como a favor do regime nazista.

Abaixo, uso alguns fragmentos do texto de Mariano Suárez (leiam também o original em espanhol) e incluo outras enformações, em vermelho, de pesquisa em outras fontes. A escolha das fotos e vídeos para ilustração também é minha. 

A trama sobre o uso social da música em guetos e campos de extermínio nazistas foi centro de numerosos e documentados estudos. Segundo o jornalista, o tango argentino, já conhecido em um determinado circuito europeu desde a década de 1920 graças à influência de Carlos Gardel, foi também um elo nessa corrente social e, como outras músicas, fez parte tanto de atos de resistência como dispositivo do massacre.

Mariano Suárez lembra do famoso filme “O Pianista” (Roman Polanski, 2002), que expôs a vitalidade da vida musical no gueto de Varsóvia, estabelecido há 80 anos. A rua Leszno, inclusive, era até humoristicamente chamada de a “Broadway de Varsóvia”. O filme narra o sofrimento do pianista polonês Wladislaw Szpilman e a persistência das diferenças de classe dentro do gueto e na comunidade judaica, mesmo sob opressão. E como, nessa estrutura social, a música representava um caminho para a sobrevivência.

Nesse filme, talvez uma das cenas mais lembradas é a que Szpilman (interpretado por Adrien Brody) toca a “Balada No. 1 em sol menor” de Chopin diante de um oficial alemão, que em seguida o ajuda em sua sobrevivência (na vida real, o pianista tocou a “Noite nº 20 em dó menor”, mas – em qualquer caso – a licença do filme é legítima porque é o importante é o fato de Szpilman ter interpretado um compositor polonês).

Szpilman é hoje um emblema da resistência ao Holocausto. Um destino diferente teve a lendária cantora judia Wiera Gran, também parte da vida musical do gueto, mas como um contraponto a  Szpilman, destacou-se como colaboradora do regime nazista.

Com um registro sugestivo de contralto, sua voz pode ser rastreada até hoje em plataformas digitais na versão de “Uliczka w Barcelonie” (Uma pequena rua de Barcelona), que não é outra senão o tango “Callecita de mi barrio” (1925, Alberto Laporte / Othello Gasparini), um clássico de Gardel.

O tango estava muito difundido na Polônia nesta época e, depois de Paris, Varsóvia foi uma das cidades que melhor recebeu a música argentina. Existem versões polonesas de “Caminito”, “Piedad”, “Esta noche me emborracho” e, naturalmente, essa vida durou após a instauração do gueto em novembro de 1940.

A música nos guetos e nos campos de extermínio não era uma exceção. Fazia parte da  vida  cotidiana dos campos, nos quais havia orquestras e a música fazia parte do circuito planejado da circulação de sentido.

Eduardo Bianco y “Plegaria”, el tango preferido de Goebbles que se tocaba en los campos de concentración

Eduardo Bianco e “Plegaria”, o tango preferido de Goebbles, que se tocaba nos campos de concentração

É conhecida a história do tango “Plegaria”, do violinista Eduardo Bianco, de Rosário, escolhido por Joseph Goebbels para acompanhar o horror cotidiano em Auschwitz. O poeta Paul Celan o renomeou como “O Tango da Morte”.

De letra talvez convencional e um pouco desajeitada (existem versões desse tango de Gardel e Francisco Canaro), “Plegaria”, no entanto, capturou as hierarquias nazistas por seu ar nostálgico, que eles consideravam ideal para o dispositivo dos campos.

EDUARDO BIANCO

No início de careira, Eduardo Bianco foi violinista clássico. Logo viajou à Europa, onde dormou uma orquestra típica. Com Bachicha Deambroggio liderou a formação com maior sucesso no continente nos anos de 1920 e 1930. Tocaram, obviamente, na Alemanha, na Scala de Berlim, e em outros salões – para reis, príncipes, presidentes e ministros. Unos de sus tangos se convirtió en un éxito instantáneo. Plegaria, letra y música de Eduardo Bianco.

¡Ay de mí!… ¡Ay señor!…
¡Cuánta amargura y dolor!
Cuando el sol se va ocultando
(una plegaria)
y se muere lentamente
(brota de mi alma)
cruza un alma doliente
(y elevo un rezo)
en el atardecer.

Confira a letra completa em Todo Tango. 

A letra fala de uma mulher que morre e está cheia de lugares comuns, mas isso não importava muito, porque nem os franceses nem os alemães entendiam o que dizia o cantor. Plegaria se independizou e, com outra letra, escrita em alemão, se transformou em sucesso. Quem não se independizou foi Bianco. Tocou para Goebbels e para Hitler, entre outros.

Tango e holocausto – Der tango fun Oshvientshim

Nos campos, a música também fazia parte do circuito de resistência e, dentro dos campos, os prisioneiros compunham. É paradigmático o “Tango de Auschwitz” (seu nome real é “Der tango fun Oshvientshim”), que pode ser transcrito graças à memória da ex-prisioneira Irke Yanovski, que lembrou que se cantava ao som de uma melodia de tango antes da guerra (com um compasso de dois por quatro, próprio da primeira etapa do tango) para elevar o ânimo das prisioneiras.

“O tango era um ritmo popular no período de pré-guerra e os prisioneiros continuaram a usá-lo nos campos e nos guetos como base de suas novas letras”, escreveu a pesquisadora inglesa Shirli Gilbert.Oh, el tango de las esclavas de Auschwitz/Espuelas de acero de nuestros guardianes/Oh, los días de libertad nos reclaman“, diz a canção.

A música teve mais de uma função e não é redutível a um estereótipo ou a uma perspectiva simplificadora, mas, em qualquer caso, é evidente que os prisioneiros recorreram a ela para sustentar o ato da humanidade de estabelecer uma relação de continuidade com a existência de pré-guerra e construir uma estrutura que lhes permitisse assimilar a crueldade que a experiência lhes impunha.

Nesse ponto, o tango argentino foi, como toda expressão estética, um fato distante do ato deliberadamente mecanizado da aniquilação.

 

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