Cartas de Baires: Os cronópios saem em viagem!


“Y sueñan toda la noche que en la ciudad hay grandes fiestas y que ellos están invitados”

Hoje, quando vocês lerem esta coluna, já estarei longe, na terra de Fernando Pessoa. Mas sigo com o espanhol na mala.

Pretendo reler “Historias de Cronópios e de Famas“, um dos meus livros preferidos do autor argentino Julio Cortazar (1914-1984) e uma obra que completa 50 anos desde sua primeira publicação.

O texto foi escrito em Roma e Paris, entre 1952 e 1959, e editado somente em 1962.

Oferece uma espécie de reinvenção do mundo através de seus personagens: os “cronópios”, os “famas” e as “esperanças”, que alcançam sensibilidade e fascínio na medida em que traduzem a psicologia humana. É super cortaziano.

Os cronópios, segundo Cortázar, são seres verdes e úmidos, inteligentes, desprendidos, um pouco esquecidos, artísticos, poéticos, cantantes e desordenados. Gostam das cores azul e verde.

Eles cantam como as cigarras, indiferentes ao cotidiano, esquecem tudo, são atropelados, choram, perdem o que trazem nos bolsos e, quando saem em viagem, perdem o trem, chove a cântaros, levam coisas que não lhes servem. Mas não desanimam.

“Los cronopios no se desaniman porque creen firmemente que estas cosas les ocurren a todos, y a la hora de dormir se dicen unos a otros: La hermosa ciudad, la hermosísima ciudad. Y sueñan toda la noche que en la ciudad hay grandes fiestas y que ellos están invitados. Al otro día se levantan contentísimos, y así es como viajan los cronopios”.

Os famas, pelo contrário, são organizados e práticos, prudentes, fazem cálculos e embalsamam suas lembranças; quando fazem uma viagem, mandam alguém na frente para verificar os preços e a cor dos lençóis. Eles nunca falam sem ter certeza de que suas palavras são as apropriadas, temerosos de que as esperanças (sempre alertas) deslizem pelo ar e por uma palavra equivocada invadam o coração bondoso do cronópio.

As esperanças, um meio termo entre os dois, “são sedentárias e deixam-se viajar pelas coisas e pelos homens, e são como as estátuas, que é preciso ir vê-las, porque elas não vêm até nós”, ao contrário dos cronópios e famas que gostam de viajar.

As esperanças se irritam quando vêem os famas bailarem trégua ou catala, pois elas, tais como os cronópios, dançam espera.

Quem quiser escutar o próprio Cortazar lendo o texto em que os cronópios saem em viagem, é só entrar na página Audiovideoteca da Cidade de Buenos Aires. Um espaço virtual que é um tesouro, uma mescla de centro de produção audiovisual com arquivo, dedicado à preservação e difusão da cultura argentina contemporânea.

Na audioteca é possível escutar, por exemplo, a Rodolfo Walsh lendo o Capítulo 23 de Operação Massacre, ou a Juan Jose Saer recitando A Arte de Narrar. Entre os escritores contemporâneos, há entrevistas em vídeo com Fabián Casas ou Leopoldo Brizuela, para citar alguns. Coisa para manter a gente entretida por horas.

Um bom cronópio, como diz Cortazar, sempre esquece o essencial e mesmo assim tem que sentar em cima da mala para fechá-la! Mas nunca deixa em casa o caleidoscópio, que serve, entre outras coisas, para descobrir “os seus”. Uma espécie de “prova-cronopios”, que será, obviamente, testado entre os lisboetas.

 

Texto no Noblat, AQUI.


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