Milongueando contra o neoliberalismo

milongas portenhas em crise

cuando no tengas ni fe,
ni yerba de ayer
secándose al sol

 

Cinco orquestras, quatro DJs e diversos dançarinos profissionais promovem um grande baile ao ar livre na tarde do dia 13 de abril (sábado), no bairro de Palermo, em Buenos Aires, para alertar sobre os efeitos da crise econômica no tango, gênero considerado um dos eixos da identidade argentina.

“As pessoas estão com dinheiro justo para comer e pagar o aluguel e, obviamente, quando não conseguem chegar ao fim do mês, o primeiro que cortam são os investimentos em cultura e ócio”, afirma Lucas Furno, um dos diretores da Orquesta Romantica Milonguera e um dos organizadores do evento. Ele destaca que, para além do empobrecimento dos trabalhadores da área tangueira, o que está em jogo é rompimento de um ciclo de retomada do tango na Argentina que vinha sendo construído nos últimos anos.

milongueando contra o neoliberalismo Foto Robert Serbinenko

Foto Robert Serbinenko

O tango teve seu auge nos anos de 1940 e 1950 e depois quase morreu, sendo somente uma lembrança. “Custou muito voltar a ter um país semeado de milongas, bailarinos, maestros, orquestras típicas e de gente jovem se aproximando ao tango. O mundo milongueiro hoje é o mundo do mercado interno, da gente argentina, da capital federal, da grande Buenos Aires e do interior. E é isso que precisa ser entendido. O tango não deve viver somente dos turistas, isso seria um tango estéril, um souvenir”.

O setor vem sendo impactado com a crise econômica desde 2017, mas os problemas arrefeceram nos últimos seis meses. Há um temor de que se agrave ainda mais com a baixa estação, de março a setembro, que coincide com a redução da visita de turistas europeus, e a chegada do inverno, quando as pessoas saem menos de casa à noite. Junho é considerado o pior mês para os organizadores de milongas.

 

A queda no poder aquisitivo da população, aliada à inflação que chegou a 47% no ano passado e o aumento de impostos (somente o gás aumentou mais de 1000% no governo de Maurício Macri) vem provocando o fechamento de milongas, como são chamados os espaços de baile, com consequente redução de mercado para músicos, bailarinos e professores.

milongas de buenos aires milonga del vinilo

Pelo menos duas milongas anunciaram que fecham as portas este mês porque as contas não fecham, a Milonga de Vinilo e a Bohemia Tanguera. Alejandro Drago, pianista da Orquesta Victoria e um dos organizadores da milonga que acontece no Café Vinilo há sete anos, diz que o aumento de serviços como água luz e gás incidiu nos aluguéis das casas noturnas está inviabilizando o seguimento da proposta tal qual foi concebida: a la gorra, como se diz na Argentina, sem cobrança de ingresso fixo e com contribuição espontânea. Ele acrescenta que no atual cenário só vale a pena seguir se a capacidade da casa está em 80%. “Menos que isso, não se sustenta”.

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Para Lucio Claros, da Bohemia Tanguera, os últimos meses vinham sendo sustentados pelos turistas estrangeiros, atraídos pela desvalorização da moeda argentina. Com a chegada do frio, o circuito tangueiro fica nas mãos dos milongueiros locais, que estão sem dinheiro. “O que antes saía para dançar três ou quatro vezes por semana, agora sai duas. Quem tomava um vinho sozinho, agora divide a garrafa como outros dois. Para os donos de milongas subiram os impostos e os alugueis. É uma cadeia, e todo o setor se vê afetado. Os promovemos as milongas fazemos isso por amor, mas chegamos a um nível insustentável. Nos reinventaremos no verão que vem”, diz.

el afronte

 

O cantor Marco Bellini, da orquestra El Afronte e um dos organizadores da Maldita Milonga, acrescenta que o circuito do tango é pequeno, mas fiel, composto por gente que sai todos os dias da semana para dançar. “O tango se vive todos os dias em Buenos Aires. A desvalorização do peso favoreceu o turismo estrangeiro, mas este é um circuito que deve se sustentar com o público local.  É ele que constrói a identidade cultural do gênero”.

Martín Chili, da milonga Muy Lunes, traz ainda outro ponto importante. Ele diz que em tempos de crise as milongas são lugares de contenção, de abraço, de estar entre gente amiga e de receber apoio. “A pessoa que está sem trabalho e dinheiro é justamente a que precisa poder dançar”, diz. A milonga Muy Lunes cobra uma entrada fixa e tem espécie de “bolsa” para as pessoas que não podem contribuir no momento. “É importante que todos paguem uma entrada, justamente para a gente poder bancar os que estão em dificuldade e pagar decentemente os profissionais, para que músicos e bailarinos possam viver do tango, nem que seja um dia da semana”.

Para Matías Gualtieri, da ong Abogades Culturales, que faz assessoramento jurídico gratuito às milongas, artistas e centros culturais independentes, o tango é patrimônio cultural e precisa de uma política publica para financia-lo. O setor conseguiu regulamentar no ano passado a Lei de Fomento às Milongas, a primeira do gênero, que dá um subsídio a algumas milongas e ajuda o setor, mas não é considerada suficiente.  “O tango não é a soja portenha, como diz o presidente Maurício Macri, nem somente uma vitrine para o mercado interacional em agosto, durante o mundial de tango, é todo o ano. O tango precisa deixar de viver de esmolas”.

 

SERVIÇO

O evento “Milongueando contra o neoliberalismo”, que reúne diversos artistas da cena tangueira será realizado neste sábado, dia 13 de abril, a partir das 16h30 na praça Unión Latinoamericana (Medrano esquina Costa Rica), em Buenos Aires.

A entrada é gratuita. Segundo organizadores, haverá lugar para sentar, espaço de venda de comidas, orquestras ao vivo e exibições de dança.​

 

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