Tango e Coronavírus: o tango passa o chapéu virtual

Tango e coronavírus: Buenos Aires fecha três meses sem abraços. Pela primera vez em sua historia, a capital argentina se vê privada do tango em suas múltiplas manifestações e, forçosamente, repensa seu lugar e sua organização como classe trabalhadora.  O Aquí me Quedo conversou com várias pessoas do setor – bailarinos profissionais, organizadores de milongas e milongueiros – sobre as dificuldades econômicas que enfrentam durante a pandemia.

É a segunda matéria de uma série sobre o tema. A primeira foi com Celeste Rodriguez, em Berlim, onde as aulas presenciais começam a voltar.

Tango e coronavírus: emergência econômica

tango e coronavírus TTD Por meio das redes sociais, a Associação de Trabalhadores de Tango Dança (TTD) promove uma campanha de doação de alimentos ou dinheiro para a compra de bolsões de comida para bailarinos e professores de tango em situação de emergência econômica.

Outra proposta, batizada de “CAST – Cruzada de Abraço Solidário de Tango”, iniciativa de TTD, Associação de Organizadores de Milongas (AOM) e Associação de Milongas com Sentido Social (MiSeSo) criou as figuras de “madrinha e padrinho”, “madrinhe e padrinhe” para conectar pessoas que podem colaborar financeiramente com os trabalhadores mais necessitados. Por whatsapp, o espaço Nuevo Gricel, sede de muitas milongas, faz um sorteio e pede doações para não fechar as portas definitivamente.

Somente três exemplos da gravidade da situação do tango – declarado Patrimônio Cultural Imaterial pela Unesco em 2009 – em sua própria casa. Há muitos mais.

 

Entre as atividades culturais, o tango foi uma das primeiras a suspender suas atividades em Buenos Aires, no dia 11 de março, mesma data em que Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou como pandemia a COVID-19. E, por suas características – contato estreito, intenso fluxo de turistas, intercâmbio entre faixas etárias e muitos milongueiros de idade avançada – vai tardar para voltar. De acordo com um levantamento feito pelo setor, pelo menos 15 mil pessoas foram afetadas pelo fechamento das atividades vinculadas ao tango.

“A marcada informalidade e precarização nas relações trabalhista são problemas históricos do setor, que somado à falta de reconhecimento formal por parte do Estado em relação aos trabalhadores da nossa comunidade, nos colocou em cheque diante deste cenário socio-económico e sanitario que estamos viviendo”, diz Rodrigo Calvete, de TTD.

tango e coronavírus maldita milonga

Maldita Milonga

Essa pausa se traduziu no fechamento imediato de todas as milongas, os espaços de baile, quase 200 somente na cidade de Buenos Aires. A reabertura destes lugares não deve acontecer antes de dezembro de 2020, pelo menos na Capital. Também foram canceladas todas as aulas e shows, de dança e música, incluindo agendas futuras. Turnês no exterior ficaram em suspenso.

Foi cancelado também o Festival e Mundial de Tango, um dos principais eventos anuais do setor, que se realiza em agosto. Segundo as secretarias de Cultura e Turismo da Argentina, o tango é um ramo que traz ao país US$ 2 milhões anuais.

tango e coronavírus mundial de tango

Os bailarinos profissionais estão entre os mais desarticulados. “Os trabalhadores das casas de tango estão absolutamente desamparados, não tanto quando os de rua, mas quase”, afirma Valeria Buyatti, representante da (MiSeSo). De acordo com levantamento do setor, feito durante a pandemia, Buenos Aires tem 19 casas de tango, nas quais trabalhavam cerca de 200 bailarinos.

Para mitigar a situação, muitos desses profissionais começaram a oferecer classes online, mas essa modalidade só se sustenta no tempo – pelo menos para o tango – se forem para duas pessoas fazendo a quarentena juntas, ou no caso de aulas de técnica pessoal, individuais. Mesmo assim, a renda não é comparável à obtida em tempos de “velho normal”.

 lorena e cristian Os bailarinos e coreógrafos Lorena Goldestein e Cristian Gallardo estavam com o espetáculo Tango Vivo montado, contratados pela OZ Productions Worldwide para uma turnê na Europa.

No total, seriam 18 artistas no palco, sendo 12 bailarinos e um quinteto de músicos, com cantora, além do toda a equipe técnica que viajariam no segundo semestre.

Lorena informa que os ensaios seguem online, e que há uma expectativa de que a agenda de apresentações se ative a partir do início do ano que vem, “mas até lá só nos resta esperar e seguir com nossas classes online”.

A situação dos músicos

Os músicos estavam um pouco mais organizados, e seguramente vão voltar antes que as milongas, mas também enfrentam situação complicada.

Lucas Furno, músico que participa de várias orquestras (Tango Bardo, Romantica Milonguera, Tanturi, O.T Villa Crespo), informa que neste momento estaria na Europa. “Já tínhamos passagem e dois carros alugados por um mês”, acrescentando que quando começou a pandemia estavam participando, com Tango Bardo, de um filme canadense que também foi suspenso.

“A pandemia tirou o esqueleto do armário e deixou em evidência o que, de fato, já sabíamos. Tem muito tempo que a gente está mal. O tango segue sendo uma mala palavra, com pouca difusão, uma música que as pessoas descobrem por acaso”, diz. E acrescenta que, no caso das casas de tango, “mostrou a precariedade trabalhista total dos que trabalham nestes lugares e o maltrato dos donos para com os funcionários, que siquiera podiam faltar em caso de doença”, denuncia. “Não creio que vá ser a morte, mas é um grande momento de reflexão”.

Alguns músicos estão fazendo lives tangueiras, como Cucuza Castiello, nas quais as pessoas podem contribuir com a gorra amiga – colocando algo de dinheiro no “chapéu virtual”.

Este mês, o governo da cidade de Buenos Aires aprovou um protocolo de segurança para streaming, gravações e ensaios (sem público), uma vitória da Asociación Civil de Managers Argentinos (ACMMA). Por este protocolo, os músicos e bandas vão poder voltar aos estúdios para criar e gravar suas obras. Também abre uma janela para transmissões via streaming e, dessa maneira, para que os músicos possam monetizar seus trabalho, seja com a venda de entradas ou doações.

 

Tango e coronavírus: as milongas

 tangotica

Tangótica

As milongas, que já vinham enfrentando problemas com a crise econômica, estão sem perspectiva de volta em médio prazo. Estes espaços empregam de 5 a 35 pessoas, de acordo com o tamanho da milonga, segundo informa o presidente da AOM, Julio Bassán.

Nesse sentido, foi vital a criação da Bamilonga,  uma  lei que garante um subsídio aos espaços de baile, sancionada en 2016 e reglamentada no ano seguinte. En 2019, 54 milongas dividiram um valor de 9 milhões de pesos. Este ano, foram apresentados 130 projetos e valor a ser distribuido é de 16,2 milhões de pesos.

Mas não é somente uma questão econômica.  “Consideramos a milonga como um espaço facilitador do desenvolvimento dos vínculos sociales, como um lugar de pertencimento e marco de constitução da subjetividade”, diz Marcelo Bottaro, presidente de MiSeSo e um dos organizadores de Tangótica.

“Se por um lado está o problema dos de organizadores de milongas, que estão sem trabalho, por outro está o desejo que nós, milongueiros temos do encontro”, acrescenta Oscar Stumpfs. A milonga é um espaço de contenção social.  Para as pessoas de idade mais elevado, algumas vezes é a única saída da semana e o principal encontro social com amigos.

Essa pausa no tango, por outro lado, proporcionou um início de organização inédito no setor. Foi criada a Assembléia General de Trabalhadores do Tango, e lançado o primeiro Censo Nacional. Bassán, presidente de AOM, afirma que a pandemia deixou em descoberto a precaridade, a informalidade e a pouca organização do setor. “É um bom momento para organizar-se, unir-se e perguntar-se. Porque na realidade não sabemos sequer quantos somos, quem somos e onde estamos”. A classe está fazendo esse dever de casa, falta agora um pouco mais de atenção do governo para com o setor, vital para a cultura e também para a economia da cidade.

 

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